Formando leitores por amor aos livros

“É uma tristeza imensa, uma solidão dentro da solidão, ser excluído dos livros – inclusive daqueles que não nos interessam.” (Daniel Pennac)

Uma professora tem a oportunidade de conviver com o que há de mais belo no mundo: o potencial humano. Esta não é uma convivência qualquer, mas a oportunidade de fazer diferença, de mudar para melhor, de contribuir com uma formação que nunca tem fim. E ao longo deste caminho, uma professora vai encontrando muitas pessoas que marcam sua vida.

Todos os alunos também influenciam a professora, mudam seu modo de pensar e a ensinam, em uma troca mútua que Paulo Freire definiu tão bem: “Ninguém educa ninguém, ninguém se educa sozinho, os homens se educam em comunhão”. E nesse mútuo educar, deparamos com algumas pessoas que marcam profundamente nossa vida, que nos fazem ver o mundo por uma nova perspectiva, e vamos carregando conosco essas histórias, que passam a fazer parte de nossa própria.
Uma dessas pessoas cuja história me modificou foi o ‘seu’ Sebastião.

Conheci-o há mais de uma década, em um projeto de alfabetização de adultos de que participei, como estagiária, na época em que eu cursava pedagogia. Pedreiro de profissão, seu Sebastião procurava esconder as mãos calejadas e fortes das quais se envergonhava quando apertava com força demais o lápis, tão frágil e pequeno em suas mãos, nas tentativas de escrita. A folha se rasgava, a letra era tremida, de traço grosso, e seu Sebastião se constrangia dizendo que não tinha jeito pra coisa. Mas tentava, a cada aula nesse grupo, apoiado pelos outros trabalhadores que solidariamente o apoiavam e mostravam, eles também, suas dificuldades e percalços.

Seu Sebastião nos contou como se sentia em uma sociedade onde a escrita está por toda parte, ele que ainda não sabia ler. Disse que era como ser cego, ver e não entender aquelas letrinhas que se juntavam para dizer alguma coisa. Que tinha vergonha de perguntar o nome de um ônibus, que se atrapalhava para fazer compras no mercado. Os colegas de sala, ouvintes atentos, concordaram, e eu fiquei tentando em vão imaginar como alguém pode estar dentro, e ao mesmo tempo fora, das práticas de escrita e de leitura de que participamos todos os dias sem nem mesmo nos dar conta.

Se recuarmos um pouco na história, veremos que há três gerações era muito comum no Brasil não saber ler.

Para quem convive com a base da pirâmide social, aqueles que dia a dia ganham o pão com o suor de seu rosto, que se apertam no transporte público, que percorrem longas distâncias entre suas casas e locais de trabalho, que criam seus filhos nas escolas públicas com dificuldade e orgulho de dar-lhes a oportunidade de estudar, oportunidade que não puderam ter, é claro o valor que se dá aos estudos, aos livros. É preciso estudar para ser alguém na vida, é preciso estudar para escapar da pobreza, do desemprego ou do subemprego, da luta diária pela subsistência. A escola ainda é vista como o único meio de ascensão social possível, embora pouco a pouco sua aura esteja se quebrando, em função das ondas de alunos que fracassaram em atender ao modelo que a escola espera receber.

Os inúmeros problemas da escola são alardeados pela mídia, e são bem conhecidos: classes lotadas, professores mal-remunerados obrigados a lecionar em muitas turmas para ganhar sua subsistência, além de outros problemas que não são exclusivos da escola, mas que nela se refletem, como a violência, as drogas, etc. Mas se pudéssemos escolher uma área onde emergencialmente devêssemos concentrar nossos esforços, essa seria a formação de leitores.

As crianças que entram na escola trazem seu espírito curioso, irrequieto, sedento de aprender, de se mover, de experimentar, de conhecer o mundo. Imaginem que conseguíssemos preservar esse espírito e direcionar essa curiosidade para o mundo dos livros. Que a cada dia as crianças fossem apresentadas a personagens que também enfrentam enormes desafios: têm que matar um dragão, têm que ser mais espertos que o lobo mau, têm que cumprir doze trabalhos antes de alcançar um objetivo… Personagens cuja força não está no dinheiro, mas no valor interno, no caráter. Que sentem medo, que se ferem, que persistem e que são fiéis a seus princípios.

Imaginem ainda que esse momento não fosse uma obrigação, mas uma diversão. Que as crianças não precisassem fazer provas ou tarefas para mostrarem que entenderam o enredo da história, e que os verbos e advérbios desses textos não tivessem a menor relevância diante do desafio de descobrir como quebrar o encanto que prende o príncipe a uma forma ignóbil…

Se as crianças pudessem, então, ter um cantinho na classe, onde ficassem confortavelmente instaladas, o corpo molemente acomodado sobre uma almofada, ou até o colo do amigo, enquanto uma voz que muda conforme a narrativa se torne mais lírica ou mais assustadora conduz sua imaginação a lugares desconhecidos… E se elas pudessem ainda levar de vez em quando esse objeto mágico, o livro, para lerem eles mesmos de novo, em casa, ou lerem para os irmãos, ou até para a mãe, ainda que ela soubesse ler… Que delícia seria! Que maravilhoso jeito de formar leitores, sem o peso da obrigação, mas pela sedução da palavra escrita, que carrega consigo um pouco de magia…

Tive esse privilégio na minha infância. Cresci cercada de livros, que eram ainda mais preciosos por terem sido caros, difíceis de conseguir, comprados por minha mãe em prestações. Devorava-os tanto quanto podia, mas sempre fora da escola. Na escola onde fiz o ensino fundamental não havia sala de leitura ou biblioteca, a menos que houvesse uma que fosse proibida para as crianças, porque nela nunca entrei. Só comecei a ler livros na escola bem mais tarde. Eles eram escolhidos pela professora, de leitura obrigatória que seria avaliada em uma prova. Nunca conversávamos sobre a leitura, a professora não nos lia em voz alta, e não havia na classe nem livros, nem gibis, nem jornais, nenhum tipo de material de leitura além dos livros didáticos.

Mas em casa minha mãe contava histórias de sua infância, lia-nos contos de fadas com uma voz que mudava conforme a história… E como ela trabalhava tanto, nossos momentos de aproximação e de carinho eram muitas vezes mediados pela leitura. Os contos ficavam em mim, eu sonhava com eles, eu era cada personagem em uma história revivida muitas vezes.

Aprendi essa lição importante, a mais importante na formação de um leitor: que é pelo amor que seduziremos as crianças à leitura, que é pela aproximação suave, cuidadosa e carinhosa que partiremos da curiosidade natural que as crianças nos trazem e caminharemos à sua formação como leitores e como escritores. No caminho, é claro, as crianças vão se deparar com o enriquecimento do vocabulário, a estruturação das frases, as figuras de linguagem, a concordância verbal, os estilos literários… Mas a atenção não deve estar nesses apêndices, eles são apenas ferramentas, enquanto a obra é a história.

“O dever de educar consiste, no fundo, no ensinar as crianças a ler, iniciando-as na Literatura, fornecendo-lhes meios de julgar livremente se elas sentem ou não a “necessidade de livros”. Porque, se podemos admitir que um indivíduo rejeite a leitura, é intolerável que ele seja rejeitado por ela”. (Daniel Pennac)

Nem todos os professores aprenderam, quando crianças, a amar os livros. A escola naquele tempo não ensinava isso, muito pelo contrário. Mas é tempo de aprender agora, de aproximarem-se dos livros de que gostam, de começarem a ler por prazer, e não apenas por exercício do dever. Porque os professores que são bons leitores têm um brilho diferente no olhar quando lêem ou contam uma história.

“Como um professor que não se torna leitor e não tem uma sensibilidade estética com relação à produção artística pode ser capaz de fazer com que a criança produza a sua palavra, tenha acesso a uma escrita rica, tenha gosto pela leitura e vontade de escrever?” (Sonia Kramer)

Podemos fazer muitas coisas para formar professores leitores. Podemos começar a ler pelos assuntos de que mais gostamos, ampliando pouco a pouco nossas leituras para outros assuntos. Podemos formar grupos de discussão sobre um livro, ou sobre um autor, em que cada um conte o que gostou, o que não entendeu, o que faria diferente na história. Podemos, a partir dessa experiência, produzir resenhas sobre as histórias, até publicando-as no jornal da escola, ou em um blog… Podemos fazer um sarau de leitura, em que cada participante leia trechos favoritos de um ou mais autores… Basta colocar a leitura em nosso dia a dia, de modo prazeroso e constante, e ela achará seu próprio espaço.

Nós professores somos modelos para nossos alunos. Imagine que contássemos para eles sobre os livros de que gostamos, o que nos fascina neles, o que é mais difícil entender, em que concordamos ou discordamos do autor… Não seria maravilhoso ouvir alguém que você admira contando suas experiências com a leitura? Não daria vontade de ler também, de contar também, de participar desse mundo?

E voltando às histórias dos nossos alunos, que marcam nossas vidas e nos mudam para sempre… Tenho algumas, de crianças que começaram a escrever poesias, de crianças que foram exemplos para seus pais, de pessoas que passaram a acreditar mais em si mesmas, mudando seu modo de ver o mundo e assim servindo de exemplo para os que a rodeiam. As professoras geralmente têm essas histórias.

Vamos colecionar então histórias de leituras e leitores bem sucedidos, que pelo nosso trabalho aprenderam a ler a palavra e a ler o mundo? De pessoas cuja visão se ampliou, que passaram a ver cada vez mais e melhor, porque tiveram acesso ao patrimônio cultural preservado pela humanidade na escrita? De pessoas que, como conseqüência de sua formação cultural e escolar, também puderam conseguir condições melhores de vida e colaborar com sua família e sua comunidade? Nunca precisamos tanto escrever histórias assim…

Selma Moura

Publicado originalmente no Recanto das Letras em 06/07/2008

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2 thoughts on “Formando leitores por amor aos livros

  1. Gila Fregonesi says:

    Que texto delicioso de ser lido, saboreado lentamente! Sua experiência, Selma, a maneira como a narra, desperta em mim tantas lembranças boas, tanta história bem gravada em minha memória afetiva, nem sempre aflorada. Muito obrigada, querida amiga. Beijo

  2. Saionara de Araújo Weiss says:

    Olá Selma, já faz algum tempo que leio suas publicações no blog, sempre interessada no bilinguismo, mas dessa vez o título me chamou muita atenção e fiquei encantada com a história do seu Sebastião, pois há casos como o dele na minha família e nem consigo imaginar como deve ser difícil a eles realizarem tarefas tão simples para nós, como ir ao mercado, ao banco, pegar um ônibus, enfim, acredito que em tudo que façam podem sentir dificuldades e inclusive vergonha. Por outro lado, sou professora de ensino fundamental I e me deparo todos os dias com crianças fascinadas pela tecnologia e que também nos “colocam” em situação de alerta pois é preciso buscarmos formas de mostrar à eles a importância da leitura o quão legal pode ser passar um tempo na biblioteca e não necessariamente para emprestar um livro, mas para ouvir uma história, fazer um origami ou qualquer outra atividade que não seja uma prova formal com questões e que levem as crianças a desgostarem da leitura. O desafio é grande, mas vale a pena!

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