Mitos e Verdades sobre Educação Bilíngue no Brasil

por Selma Moura

Mito 1: Ser bilíngue é algo diferente e difícil

Como diz a Prof. Dra. Tereza Maher, da Unicamp, bilinguismo é simplesmente o uso alternado de duas línguas, uma condição muito comum à maioria da população mundial.[1] Visto assim, o bilinguismo não é nenhum bicho de sete cabeças. Muitas pessoas nascem e crescem em ambientes em que várias línguas são usadas, mesmo sem se dar conta, como em lares em que os pais têm nacionalidades diferentes, ou crianças que imigram para outros países. No Brasil nos acostumamos a achar que se fala uma única língua, o português, porque as mais de 230 línguas faladas aqui foram invisibilizadas.[2] Por isso muita gente estranha situações de bilinguismo e complexidade lingüística, achando que confunde a pessoa, seja ela criança ou adulto.

A maioria das pessoas do mundo é bilíngue, mesmo que nunca tenha parado para pensar nisso. Mas muitos não acham que tem o direito de serem reconhecidos como bilíngues, porque não consideram ter proficiência igual nas duas línguas. Para entender melhor, leia o texto do Prof. Dr Marcello Marcelino aqui.

Mito 2: Para ser bilíngue de verdade é preciso ter total domínio das duas línguas

Pense bem: você pode dizer que tem domínio total da língua portuguesa? Ou de qualquer outra? Afirmar isso é muita pretensão, pois significaria que você compreende, fala, lê  e escreve com competência em todas as formas da língua, com todos os tipos de falantes, todos os gêneros de texto, em todas as situações.

É claro que conhecer muito bem a língua portuguesa e a segunda língua são ótimos objetivos. Quanto mais se sabe, melhor. Mas se para ser bilíngue alguém tivesse que ter o mesmo domínio das duas línguas, em um nível muito alto, ninguém poderia ser chamado de bilíngue, não é?

Então, o desafio é para a vida toda: ampliar as competências linguísticas, nossas e dos outros, sempre, em quantas línguas forem possíveis.

Mito 3: Educação bilíngue é melhor que a educação monolíngüe

A educação é algo muito complexo. Não ocorre apenas na escola, porque os pais, os colegas, os outros adultos, a televisão, a internet, o vídeo-game… tudo isso também educa uma criança. E na escola não se aprendem apenas as línguas: se aprende a pensar, a aprender, a viver junto, a ter disciplina, a ter amigos. Também se aprendem conteúdos de todas as áreas do conhecimento. Então, com tudo isso, considerar apenas a educação bilíngue para definir uma escola é muito pouco.

Escolas bilíngues ensinam duas (ou mais) línguas, mas também ensinam os conteúdos por meio das mesmas línguas. Seu objetivo deve ser a formação integral das crianças: ética, estética, acadêmica, emocional, etc… Há excelentes escolas bilíngues, que fazem isso muito bem, e há também escolas bilíngues que não fazem, assim como ocorre com escolas regulares. Então, antes de tudo, temos que pensar o que é uma boa educação, no geral, para pensar se a educação bilíngue é uma opção que vale a pena, em cada escola, para cada família. Por que a educação bilíngue não é, em si mesma, boa ou má, e depende de como e com que objetivos seja feita.[3]

Mito 4: Educação bilíngue é para poucos

Toda e qualquer criança tem o direito de freqüentar uma escola e ser enriquecida por essa experiência: relacionar-se com o conhecimento de um ponto de vista colaborativo, participar de um grupo, brincar, aprender tanto quanto puder. Cada criança é diferente, cada uma aprende de um jeito, mas todas são capazes de aprender matemática, ciências, artes e línguas. Portanto, educação bilíngue é para todas as crianças, não apenas para as que têm maior facilidade. Pena que em nosso país poucas crianças têm a oportunidade de desenvolver todo seu potencial na escola. Pena que a desigualdade não permita que todos tenham acesso aos recursos educativos que desenvolvemos. Pena que muitas crianças imigrantes, surdas, indígenas ou pobres não tenham a oportunidade de desenvolver todas as suas competências linguísticas em escolas que considerem suas necessidades, interesses e desejos. Mas que elas são capazes de aprender, de se beneficiar de uma boa educação bilíngue, isso não se deve duvidar. Temos sim a obrigação ética de lutar por seus direitos lingüísticos, bem como pelos demais.

Mito 5: Educação bilíngue tem que ser em inglês e português

É verdade que a maioria das escolas particulares bilíngues no Brasil tem o inglês como segunda língua, até porque o inglês hoje é uma língua global, necessária para a comunicação. Mas é verdade também que há escolas bilíngues que tem ensino em japonês, alemão, francês, kaxinawá, tupi-guarani e muitas outras línguas. E quanto maior a diversidade de línguas presentes em nosso país, maior será nossa riqueza.

Mito 6: Todas as escolas bilíngues no Brasil são particulares

Há escolas públicas bilíngues no Brasil, voltadas às minorias linguísticas – surdos, povos indígenas e moradores de fronteiras. Deveria haver muito mais. Deveria haver escolas públicas bilíngues em comunidades quilombolas, e em bairros com alta densidade de imigrantes, como a Liberdade e o Bom Retiro, em São Paulo, porque as crianças que vão para a escola pública e não falam português não conseguem aprender as matérias se não entenderem a língua. Deveria haver um ótimo ensino de línguas em todas as escolas do país, inclusive com programas de educação bilíngue, para que todas as crianças e jovens que quisessem aprender línguas e ter acesso a mais informações o pudessem fazer.

Mito 7: Escolas bilíngues devem seguir dois currículos, o brasileiro e o de outro país

Você sabe o que é um currículo? É o que define que tipo de aluno se pretende formar e como isso será conseguido. O currículo organiza o ensino da escola com base em uma grande variedade de fatores: perfil dos alunos e da comunidade, filosofia pedagógica da escola, disponibilidade de professores, objetivos de ensino, materiais disponíveis, entre outros aspectos.

As escolas bilíngues no Brasil não têm uma regulamentação específica, estando sujeitas às mesmas leis e obrigações que as demais escolas. Por isso, seguem os Parâmetros Curriculares Nacionais propostos pelo Ministério da Educação – o que é bom, pois garante certo encadeamento e continuidade caso a criança mude de uma escola para outra.

Algumas escolas adotam também o currículo de um outro país, o que é complicado. Se não houver um trabalho muito cuidadoso e competente de adaptação à nossa realidade e às nossas crianças, a maior probabilidade é de se fazer uma colcha de retalhos. A melhor saída para isso é se construir um currículo integrado, pois o aluno é um só e as conexões serão feitas – por ele sozinho, ou com apoio da escola.

Mito 8: As crianças bilíngues tem duas culturas

Ouço muitos pais e professores preocupados em preservar “a cultura brasileira”, ou em ensinar “a cultura internacional”, ou “a cultura americana”. Pergunto para eles quais são as suas culturas. E eles demoram a responder, se justificando: “Ah, eu gosto de futebol, mas não sou fanático, e de vez em quando vejo o Carnaval, mas não gosto de samba, então, tenho a cultura brasileira, mas não muito”.

Parece que a cultura é uma feira, onde você vai, olha, escolhe o que quer ou não, o que vai querer levar para casa. É como se houvesse uma coisa chamada “cultura brasileira”, e o mesmo para outras culturas. Mas isso é uma visão muito limitada de cultura. Um país como o nosso, com tanta riqueza e variedade, tem uma cultura única? Como dizer o que é e o que não é cultura brasileira? Será que há características que valem para as pessoas nas capitais e no interior, no sul e no norte, nas cidades litorâneas e na floresta amazônica…? É claro que há muitas culturas no Brasil, e que elas são muito mais do que os estereótipos de samba, futebol e carnaval que se vende nas propagandas do país.

Então, as crianças nas escolas bilíngues ou regulares não precisam aprender a cultura sob este ponto de vista. Vão se beneficiar muito mais se virem a cultura como a vida, os hábitos, as semelhanças e diferenças de modos de viver , pensar e organizar o mundo, que estão lá, no próprio dia-a-dia da sala de aula. E aprender com a diversidade pode ajudá-las a ser mais tolerantes e respeitosas, ter mais auto-estima e segurança, e desenvolverem curiosidade pelo mundo. Não há apenas duas culturas nas escolas. Há muitas.

Para quem quer entender melhor esta questão, sugiro a leitura do artigo de Alfredo Veiga Neto, “Cultura, culturas e educação”

Mito 9: A escola bilíngue deve alfabetizar primeiro em português e depois na segunda língua

O que é uma pessoa alfabetizada? É alguém que consegue juntar as letras, percebendo os sons que formam? Ou aquele que sabe ler e escrever palavras simples, bem como assinar seu nome? Seria aquele que sabe ler e escrever qualquer tipo de texto?

Quando uma criança consegue “decifrar” como as letras se juntam, e está curiosa em descobrir o maravilhoso mundo da leitura, ela tenta ler tudo o que vê pela sua frente: placas de rua, folhetos, jornais, gibis, etc, seja lá em que língua estiver. E andando pela rua, todas as crianças vão encontrar muitas palavras em várias línguas: marcas dos carros, propagandas de lojas, anúncios publicitários… Ela vai lê-los, independentemente de saber a pronúncia correta dos sons ou não. Se a criança for bilíngue, nessa leitura reconhecerá várias palavras já conhecidas, podendo até perceber qual é a pronúncia correta. Chamamos a isso de ajuste fonético. Sua experiência com a cultura escrita e com as línguas a ajuda a decifrar essas escritas e a compreendê-las, e assim, quando as crianças bilíngues começam a ler em uma língua, naturalmente tentam ler na(s) outra(s) também. Se as línguas tiverem o mesmo registro (as mesmas letras) como português, italiano, alemão, espanhol, francês, inglês, etc, ela consegue fazer essa leitura, com ou sem a ajuda da família e da escola.

Podemos ignorar tudo isso, por um pressuposto nosso, de que seja difícil para ela, que vai confundi-la, que não vá aprender… Mas a experiência e as pesquisas demonstram que se a ajudarmos ela consegue sim aprender a ler e a escrever com tranqüilidade, em duas ou mais línguas. O problema não é a criança, mas sim nosso preparo para lidar com a complexidade dessa situação, que geralmente é diferente de nossa própria experiência.

Ah, e para concluir esse trecho: a criança só se alfabetiza uma vez, não há duas alfabetizações, como se fosse primeiro uma, depois outra. E a alfabetização de crianças bilíngues tem semelhanças e diferenças da de crianças monolíngües, que requerem formação e atenção específicas.

Tem  outras dúvidas sobre bilinguismo e educação bilíngue?

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Para saber mais:


[1] Sugiro a leitura do texto  da Profa. Dra. Tereza Maher em “Do casulo ao movimento: a suspensão das certezas na educação bilíngue e intercultural”. In: CAVALCANTI, Marilda C. e BORTONI-RICARDO, Stella Maris (orgs). Transculturalidade, linguagem e educação. Campinas, Mercado das Letras, 2007

[2] Para saber mais, leia o artigo da Profa. Dra. Marilda Cavalcanti: Estudos sobre educação bilíngüe e escolarização em contextos de minorias lingüisticas no Brasil. DELTA [online]. 1999, vol.15, n.spe, pp. 385-417.

[3] Veja os 10 possíveis objetivos elencados por Baker e Jones para a Educação Bilíngue, e repare que alguns são até opostos a outros: “1. Assimilar indivíduos ou grupos na  corrente predominante da sociedade; socializar pessoas para participação completa na comunidade. 2. Unificar uma sociedade multilíngüe; trazer unidade a um estado diverso multietnicamente, ou linguisticamente multinacional. 3. Possibilitar que as pessoas se comuniquem com o mundo exterior. 4. Prover habilidades lingüísticas que são negociáveis, auxiliem na empregabilidade e no status. 5. Preservar identidade étnica e religiosa. 6. Reconciliar e mediar comunidades linguisticamente e politicamente diferentes. 7. Expandir o uso de uma língua de colonização, socializando uma população inteira a uma existência colonial. 8. Fortalecer grupos de elite e preservar sua posição na sociedade. 9. Dar status igual na lei a línguas de status desiguais na vida diária. 10. Aprofundar a compreensão de língua e cultura”. (Baker & Jones BAKER, Colin; JONES, Sylvia Prys. Encyclopedia of bilingualism and bilingual education. Clevedon: Multilingual Matters, 1998.)

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7 thoughts on “Mitos e Verdades sobre Educação Bilíngue no Brasil

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  4. Luciana says:

    Por favor, gostaria se possivel de informa’c~oes como:
    – qual deve ser os requisitos minimos para selecionar uma boa escola bilingue ?
    – qual a faixa no mercado de pre’co das escolas bilingues.
    – qual ‘e a idade mais recomendada para inicio nas escolas bilingues, porqu^e?
    – existe algum ranking de escolas de educ’a’cao infantil ?
    Parabenizo os editores, idealizadores, etc… pelo site que acredito ser informativo e cientifico.
    Agrade’co a aten’cao.
    Luciana

  5. Lily Baptista says:

    Moro na Inglaterra e um dos meus filhos que eh fluente em portugues , ingles e tem grande facilidade de falar frances e entender outras linguas, tem uma disfuncao sonora (ele confunde os sons das varias linguas que aprendeu, antes de comecar a ler e escrever, nao eh um problema na fala, mais sim o fato de quando ele era pequeno, ele teve contato com muitas linguas)e o impede ou dificulta a sua leitura, Ele estuda em um escola particular aqui na Inglaterra. Seu QI eh de 156 o que se refere a apenas 5% da populacao.
    Me sinto culpada por ter colocado esse meu filho em contato com tanta informacao, quando ele era tao pequeno, apesar de ele hoje ter tanta facilidade com tantas linguas.
    Fui orientada depois disso a nao ensinar duas liguas para os meus outros filhos antes de entrarem na escola . Hoje eles nao tem facilidade para linguas, mais conseguen ler normalmente.

    • Selma Moura says:

      Olá, Lily, tudo bem?
      Há uma série de fatores a considerar na análise do desenvolvimento de seu filho, e como a situação é complexa não pretendo opinar sem ter mais detalhes. No seu comentário, por exemplo, não está dito qual é a idade dele, nem que série ele frequenta. As pesquisas em andamento sobre bilinguismo apontam para o desenvolvimento promovido pelo contato precoce com línguas, o que pode ou não ter influenciado o QI de seu filho. Porém, há indícios de que distúrbios de linguagem existem se a aprendizagem/aquisição de línguas não for bem conduzida ou se a criança já estaria propensa a ter algum distúrbio linguístico, independentemente do contato com outras línguas.
      De qualquer forma, você não deve se sentir culpada por ter dado a seu filho mais oportunidades, muito pelo contrário! Suponho que você, como falante do português, vivendo na Inglaterra, tenha em casa pelo menos duas línguas, o que só enriquece o repertório de seus filhos, dando a eles não só o conhecimento das línguas, mas também a oportunidade de se comunicarem com os familiares que ficaram no Brasil.
      Um abraço,
      Selma

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