Preconceito linguístico: quem fala errado?

Em uma palestra para pais e mães em uma escola de São Paulo apresentei um texto escrito por um jovem de 18 anos em um e-mail para seus colegas de classe. O texto era confuso, escrito sem pausas e vírgulas, e difícil de compreender pela falta de clareza e de coesão. Havia também várias questões ortográficas, mas minha intenção, ao apresentar este texto, era discutir o conceito de alfabetização, demonstrando que ser alfabetizado é muito mais do que saber juntar as letras e compreender como o código da língua escrita se organiza. Esse jovem, por exemplo, domina o código, mas não consegue expressar-se com clareza.

Para minha surpresa, vários pais tiveram uma interpretação completamente diferente do texto em questão. Disseram que os jovens hoje em dia não têm boas habilidades de leitura e de escrita, que não conhecem regras básicas do português, que a tecnologia atrapalhou a escrita dos jovens, que escrevem de um jeito completamente diferente nos chats e redes sociais, que a escola não sabe mais ensinar, que os professores não são bons, e até que a cultura brasileira não valoriza a leitura. Puxa! Para esses pais, estamos mal mesmo!

Mas se refletirmos sobre essas percepções desses pais é fácil ver que apresentam uma série de mal-entendidos e preconceitos linguísticos, calcados em uma visão prescritiva de língua: o português é assim, sempre foi assim, e aos aprendizes cabe apenas absorvê-lo e reproduzi-lo tal qual ele é.

Fácil é perceber que esse argumento não se sustenta. As línguas mudam, absorvem novas palavras que podem até ser dicionarizadas, evoluem, se aproximam de outras línguas, com as quais estabelecem influências mútuas. Compare-se a língua portuguesa em Portugal, no Brasil, em Moçambique… Em cada país ela seguiu rumos distintos, e embora na maioria das vezes sejam inteligíveis entre si, há também muitas diferenças.

Sobre isso, confiram a entrevista do Prof. Dr. Sírio Possenti, do depto de Linguística da Unicamp, nos vídeos abaixo.

A coluna em questão Redundantemente, do Prof. Sirio Possenti, pode ser lida clicando aqui ou no título.

Quanto ao suposto prejuízo que a tecnologia causou à língua escrita, este e os milhares de blogs que proliferam na Internet são um exemplo de quanto essa ideia é falsa. Os jovens nunca leram nem escreveram tanto quanto hoje. E-mails, blogs, mensagens no celular, redes sociais como Facebook e Orkut, todos utilizam a palavra escrita como uma das linguagens (que pode ser complementada com imagens, música, vídeo, links para outros textos…). E a dinâmica desses universo exige usos mais ágeis da língua. Quem escreve tudo por extenso no celular? Desde que as mensagens sejam compreendidas, há bom uso da língua, pois seu objetivo é a comunicação. Mas as gerações que não têm experiência com o hipertexto julgam a experiência dos jovens em comparação com suas própria formação como leitores e escritores. Daí o estranhamento.

Quanto à famosa norma-padrão, é claro que todas as crianças e jovens têm o direito e o dever de conhecer as convencões da escrita e saber usá-las, pois serão úteis à sua vida profissional e acadêmica. O que precisamos ter cuidado é para não supor erroneamente que quem não domina a norma padrão não sabe falar português, ou, pior ainda, não sabe se expressar. Isso é um preconceito que, embora parta da língua, tem a função de separar, distinguir e excluir aqueles que não podem (ou não querem) usar a língua conforme o padrão prescrito. O preconceito linguístico mascara o preconceito social e racial. O livro de Marcos Bagno “Preconceito linguístico: o que é, como se faz” é uma leitura obrigatória para pais e professores. (Clique aqui para saber mais), pois desmistifica a perversidade do preconceito linguístico e desmonta alguns mitos sobre o uso da língua que foram ideologicamente construídos.

Para compreender a riqueza da variação linguística e não ver como erro aquilo que tem uma lógica perfeitamente explicável, é preciso ler “A língua de Eulália”, um livro delicioso, de Marcos Bagno, que muda completamente a visão que temos sobre as construções não-padrão da língua portuguesa, mostrando que elas têm uma semelhança muito mais próxima com o latim, o francês ou o espanhol, suas línguas irmãs, e subvertendo a visão dessas variações como mero erro.

E para ir terminando este post, quero dizer que sempre fico muito triste quando pais e mães falam que os professores não têm interesse em ensinar, que ensinam mal, que não se dedicam… Não conheço outra categoria profissional mais idealista, mais dedicada e comprometida. Pergunto aos pais: vocês gostariam que, quando crescesse, seu filho fosse professor? Eles me olham surpresos, pois não tinham pensado assim. Continuo: imagine ter, em uma classe, vinte crianças, trinta, quarenta crianças como seus filhos, todos os dias. Imagine trabalhar em duas ou três escolas, levar exercícios, provas, planejamentos para casa e trabalhar à noite e nos fins de semana. Imagine não ter seu trabalho bem remunerado, por mais formação e competência que se tenha. Imagine não ter reconhecimento na sociedade, nem mesmo pelos pais de seus alunos. Não é à toa que, em plena sociedade do conhecimento, as inscrições nos vestibulares para os cursos de licenciatura (que formam professores) cai a cada ano. Quem quer ser professor?

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